Ensaios de Literatura Especulativa

Quanta ciência deve ter uma história de ficção científica?

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Comentário a partir da resposta de Lewis a crítica de Haldane

 

A ciência da ficção científica só poderá ser cem por cento convincente para um cientista se não for mais ficção e sim a descrição da ciência existente.

Edgar Indalecio Smaniotto

[C]live Staples Lewis (1898-1963) e John Burdon Sanderson Haldane (1892-1964) são dois intelectuais que eu realmente gosto muito de ler. O primeiro por sua ficção científica, sua teologia e crítica, o segundo por seus textos de divulgação científica e a aproximação que faz entre marxismo e ciências naturais, a exemplo do seu prefácio a “Dialética da Natureza” de Engels.

Homens de ideias opostas, vivendo na mesma época, foram cada um a seu modo titãs, e não poderiam deixar em algum momento de se verem em lados opostos de um debate intelectual. No capítulo 9 do livro “Sobre histórias” de C. S. Lewis, que reúne críticas literárias e resenhas do autor, temos um texto intitulado “Uma resposta ao professor Haldane”, em que Lewis se contrapõe ao texto “Auld Hornie, F.R.S” escrito por Haldane sobre sua trilogia cósmica.

C.S. Lewis em 1948, aos 50 anos de idade.
C.S. Lewis em 1948, aos 50 anos de idade (Wikipedia)

A trilogia cósmica de Lewis são os livros de ficção científica: Além do Planeta Silencioso, Perelandra e Aquela Força Medonha; em um texto futuro voltaremos comentaremos especificamente estes três livros. Neste texto vou me ater a discussão entre os dois autores, mas também não pretendo reproduzir e comparar seus argumentos, nosso objetivo é comentar a resposta de Lewis ao primeiro questionamento de Haldane.

No seu texto crítico a trilogia cósmica de Lewis, Haldane afirma que Lewis conhece pouco da ciência moderna, e que mesmo um autor do período medieval como Dante conhecia mais a ciência de sua época ao escrever “A Divina Comédia” que Lewis ao escrever sua trilogia cósmica. Lewis responde que:

“Eu queria escrever sobre mundos imaginários. Agora que nosso próprio planeta foi todo explorado, outros planetas são o único lugar em que se pode colocá-los. Eu precisava, para alcançar meu objetivo, apenas de suficiente astronomia popular para criar no ‘leitor comum’ uma ‘suspensão voluntária da descrença’. Ninguém espera, em tais fantasias, satisfazer um verdadeiro cientista, assim como o escritor de um romance histórico não espera satisfazer um verdadeiro arqueólogo” (2018, p. 129).

A resposta de Lewis a Haldane é bem interessante por dois motivos, primeiro ele justifica a sua escolha em escrever ficção científica; e segundo, ele comenta o papel que a ciência tem na ficção científica. Se seguirmos o argumento de Lewis a expansão do gênero ficção científica, principalmente no que diz respeito a exploração de planetas, ocorreu devido ao conhecimento que alcançamos da geografia de nosso próprio mundo.

Uma vez que não existem mais “terras desconhecidas”, o gênero mundo perdido precisou deslocar suas histórias para outros mundos. Neste caso o propósito do autor pode não ser propriamente contar uma história científica, mas uma história de aventuras, que para ser mais factível, ao invés de ocorrer nas florestas da África pode ocorrer em Marte ou Vênus. Fica evidente que para Lewis este é o caso de sua trilogia cósmica, e podemos dizer que é o caso da saga marciana de Edgar Rice Burroughs e outras obras de maior ou menor qualidade em que a preocupação do autor é com a aventura, e não com a ciência em si.

Já sobre ciência, e aí devemos explorar o segundo argumento de Lewis, para ele está deve ser utilizada na medida em que se busca convencer o leitor comum da veracidade da narrativa construída. Assim como a falta de conhecimento geográfico de nosso planeta sustentava até o século XIX o gênero de histórias de mundo perdido, a ciência agora sustenta a ficção científica. Lewis reconhece que um cientista, um especialista, ao ler um texto de ficção como lê um artigo científico não ficaria contente, consideraria diversos motivos para reprender o autor quanto a utilização da ciência.

Apesar da crítica de Haldane se dirigir ao fato de Lewis não ter tornado seu romance mais científico (no que diz respeito às ciências naturais), afinal Lewis está mais preocupado com a teologia (e se está é ou não ciência é outro debate), Lewis tem razão no fato de alertar que a ficção científica não é escrita para cientistas especializados.

J. B. S. Haldane
J. B. S. Haldane

Mesmo que cientistas muitas vezes também escrevam ficção científica, Lewis considera que ela deva apresentar ciência na medida em que está seja necessária para tornar a narrativa convincente o suficiente para que o leitor médio, e não um cientista profissional, suspenda sua descrença sobre a narrativa. Motores de dobra espacial, buracos de minhoca, naves geracionais, máquinas do tempo, robôs inteligentes, alienígenas, estão no domínio da ficção, e podem ser explorados a partir de uma semântica científica.

Em uma novela de fantasia o autor recorre a um encantamento para abrir um portal entre dimensões, em uma história de ficção científica o autor recorre a tecnologia para o mesmo propósito. Em ambas se espera convencer o leitor de sua veracidade pela semântica utilizada, uma descrição utilizando a linguagem científica com propriedade tenderá a convencer o leitor da possibilidade de um portal entre dimensões ser possível, pelo menos em um futuro distante.

Logicamente existem excelentes escritores de ficção científica, que ao lidarem com a semântica da ciência consegue convencer até o leitor mais exigente das possibilidades descritas em sua história. Existem também aqueles escritores que utilizam tão apropriadamente a semântica da ciência quanto um palestrante de autoajuda fazendo um discurso sobre como você pode alcançar o sucesso na vida amorosa através do amor quântico. O escritor de ficção científica pelo menos pode se salvar se sua ciência for muito ruim, mas sua história e personagens forem muito bem construídos.

A ciência da ficção científica só poderá ser cem por cento convincente para um cientista se não for mais ficção e sim a descrição da ciência existente. Vamos aqui fazer uma observação através de duas séries de TV atualmente em projeção: The Expanse e Os Eleitos.

Os Eleitos é a história do primeiro grupo de astronautas dos Estados Unidos, ali é utilizada apenas uma  ciência existente, e, portanto, não é ficção científica. Já The Expanse é uma série em que a ciência apresentada é bastante factível, mas mesmo nesta série se poderia contestar a existência de uma protomolécula alienígena, portais entre sistemas estelares, o tipo de motor utilizado nas naves espaciais; a ciência da ficção científica é sempre mais ficção que ciência.

Não existe nenhum demérito nisso, a ficção científica é a forma que encontramos para expandir nossa imaginação pelo cosmo e pelo tempo, e assim contar histórias, construir novos mitos a partir de uma nova semântica, oriunda da ciência, e não mais da magia, como é a fantasia. Lewis com certeza utiliza mais uma semântica teológica que científica, mas seu argumento mesmo assim é valido.

[hits] Leitores

 

Referências Bibliográficas:

HALDANE, JBS. Auld Hornie, FRS. The Modern Quarterly, outono de 1946. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/haldane/works/1940s/oncslewis.htm.

LEWIS, C. S. Sobre histórias. Trad. Francisco Nunes. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018.

 

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Edgar Indalecio Smaniotto – Filósofo e doutor em ciências sociais, pesquisador de ficção científica, ensaísta, resenhista e prefaciador de diversos livros de ficção especulativa. Contato: edgarsmaniotto@gmail.com

Edgar Indalecio Smaniotto

Filósofo e doutor em ciências sociais, pesquisador de ficção científica, ensaísta, resenhista e prefaciador de diversos livros de ficção especulativa.

11 thoughts on “Quanta ciência deve ter uma história de ficção científica?

  • Bertoldo Schneider Jr

    Excelente texto! Concordo com tudo que está lá. Eu mesmo sou um cientista que aprecia FC. Talvez seja necessário comentar algo que faltou no texto. O problema que muitos “homens de ciências” (mulheres também, claro, seguindo a velha gramática) vê em FC mal escritas é a “ciência ruim”. O que é ciência ruim? É a ciência que é colocada na história como ciência, mas está “errada a priori”. Não se trata de criticar extrapolações da ciência, isso eu acho que é o motor da FC. O problema é usar ciência erradamente. Exemplos: estrelas que se colapsam virando buracos negros e passam a atrair mais (se não aumentou a massa, não atrai mais); confundir imponderabilidade com falta de inércia; Confundir a deformação de tempo de um observador externo com à de um interno à uma nave que viaja em velocidades próximas à da luz; Uma corda que para de repente a queda de um indivíduo a um metro do chão, salvando-o; essas coisas já estão definidas e têm já suas equações; confundir estrelas com planetas, sistemas estelares com galáxias e outras coisas assim. Errar na ciência que já existe (que já está estabelecida) é um erro grotesco para um escritor de FC (sempre lembrando que extrapolar o que existe não é erro). Eu acho que esta é a objeção que os iniciados e veteranos em ciência têm.

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    • Mario Frias JR

      Eu concordo, mas o escritor deve extrapolar a ciência e especular.

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      • Edgar Indalecio Smaniotto

        Com certeza, é o que propõe o Lewis em seu embate com o Haldane.

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    • Edgar Indalecio Smaniotto

      Com certeza errar a ciência já conhecida não é aceitável, mas deve ser deixado sempre a possibilidade de ir além dela. O escritor de FC não precisa ser cientista, mas precisa ter uma compreensão desta.

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    • Tomás Barbosa de Paula

      Concordo inteiramente com esse comentário! Como biólogo (e aficionado de Física e outras ciências), acrescento que a extrapolação é tanto mais aceitável quanto mais bem embasada.

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  • Será que devemos nos ater tanto a ciência a ponto de não deixar fluir a história? Quem quer ler um compêndio científico, a não ser cientistas?

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    • Edgar Indalecio Smaniotto

      Está é exatamente a resposta que Lewis da ao Haldane, ele estava fazendo literatura e não um compêndio técnico para cientistas.

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  • Marcelle Coelho do Rosario

    Edgar, muito interessante sua perspectiva de ” construir novos mitos a partir de uma nova semântica “. Tenho aprendido bastante com vc! Abraços!!!

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  • Arthur Soares de Paula

    A ficção científica deve ser científica, do contrário é fantasia. Se não houver elementos verdadeiros e testados pela ciência não é ficção científica. O autor deve dominar como funciona um foguete para escrever sobre foguetes. Deve conhecer a dinâmica planetária para ambientar em um planeta. Como descrever uma raça que vive em um planeta impossível de ter vida. Se o autor não amarrar cientificamente e convencer que pode haver alguma espécie viva em um ambiente hostil, ele não convence.

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  • Edgar. Bons os pararlelos de seu argumento entre ambos os escritores. Elucida melhor a propsta de uma FC da de uma literatura científica. Eu não os conhecia e menos ainda as duas séries televisivas: The Expanse e Os Eleitos. Continue com tais textos. Abraço.

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  • Edgar,
    interessante os seus argumentos sobre ambos os escritores. Esclarece um tanto a proposta de uma literatura científica. Continue com os bons textos.

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