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Crônica de uma decepção

Simone Saueressig

É sempre uma pena quando nos pomos a ler um livro de um autor que apreciamos e descobrimos que o texto é um pouco mais do que uma decepção, mas foi o que me aconteceu com a leitura de “Coraline” de Neil Gaiman (Ed. Rocco, col. Jovens Leitores, 2003). Fã absoluta das história de “Sandman”, mergulhei na leitura de “Coraline” cheia de expectativas. Infelizmente, a história revelou-se tão pobre que me pareceu, sem a menor sombra de dúvida, que o melhor do livro é o projeto gráfico da capa, um trabalho de excelência com ilustração de Dave MacKean, aliás, o autor das capas belas e inquietantes das HQ do “Homenzinho da Areia”.

“Coraline” conta a história de uma menina dos nossos tempos: vivendo em um novo endereço – uma velha casa dividida em vários apartamentos alugados para diferentes e estranhas pessoas – ela têm pais que trabalham em casa mas que nunca têm tempo para ela. Marcados pela globalização e pela comida rápida, quando é papai que cozinha a comida têm tudo para ter um gosto estranho. Quando é mamãe, o microondas é o principal utensílio para cozinhar. Sem irmãos, Coraline é uma criança solitária, buscando continuamente companhia e afeto do Outro e nem sempre encontrado.

O que ela encontra na sala de sua casa é uma porta que originalmente dava para o apartamento ao lado, marca de um tempo em que a própria residência em que mora tinha outra geografia. O apartamento se encontra vazio e o leitor logo sabe: aquela é a porta que levará Coraline a um outro mundo, o da fantasia, prometido na contra-capa do livro. Mas que o leitor não se engane: não há nenhum suspense em relação a este ponto. Não existe nada que crie uma expectativa real quanto ao fato literário de que será aquela a porta que levará a personagem a outro mundo ou que acrescente drama de nenhum tipo. A porta do quarto do seu filho ou de sua irmã tem mais emoção do que a porta fechada na sala de Coraline.

Em todo o caso, o outro mundo é um lugar estranho e assustador, habitado pela outra mãe (assim mesmo, em letra minúscula) que criou a outra casa, incluindo um outro pai. Lá, tudo parece o que para nós seria o ideal familiar: pais interessados e presentes. Além disso lá está estereótipo formal: mamãe é quem cozinha e quando o faz, trata de perfeição. Já no quarto da menina, os  brinquedos  vibram e falam à  sua

passagem. O outro mundo foi criado especialmente para Coraline pela outra mãe, que ambiciona que a menina fique com ela neste mundo de fantasia. Para isto a protagonista só precisa costurar botões negros no lugar dos olhos e tudo estará bem. Como Coraline não concorda com o disparate – não fica claro, mas Neil Gaiman nos faz pensar em Matrix e na discussão em torno do que é mais importante: uma vida fictícia mas perfeita, ou uma vida real e imperfeita – a outra mãe rouba-lhe os pais. E, assim, Coraline embarca em um jogo perigoso que deveria de ser apavorante – mas não consegue ser – para recuperar os pais e a realidade.

Em certa medida, o texto lembra muito “The tief of always” de Clive Barker, embora bem mais enxuto. Mas como “The tief of always”, o autor demora até encontrar a saída do livro, inventando mais de um final para o mesmo, um final que amarre todas as pontas da narrativa – mas que deixa dúvidas quanto ao autor ter conseguido isso, ou não.

Entretanto, o pior de “Coraline” está justamente onde se esperaria ver o melhor, em se tratando de Neil Gaiman: as figuras e os argumentos são óbvios e o simbolismo pobre. Mesmo os monstros não assustam. Alguns porque são tão horrendos que, mais do que medo, inspiram piedade. Outros, porque seu “elo mental” com a personagem central da história não convence em nada. E finalmente, há os monstros “óbvios”, aqueles que o leitor já sabe como são antes mesmo de se deparar com eles. Se parece lógico que o autor cria um mundo paralelo para que a quase abandonada Coraline encontre um pouco de calor humano e afeto, a discussão sobre a importância desde mundo para a menina, ou a ascendência dele sobre o mundo real passa longe do texto. Talvez coubesse fazer uma ponte entre o mundo onírico – o outro mundo – e o das drogas, mas se isso é assim, a metáfora não fica clara em nenhum momento.

O que por um lado levanta uma questão delicada: a de que não é tão fácil escrever para crianças, nem que qualquer coisa serve para os pequenos leitores. Assunto um tanto “tabu” entre o fandom brasileiro que prefere rotular de “infantil” tudo o que considera de menor qualidade. “Coraline” é Neil Gaiman e é infantil. Mas não é bom.

Simone Saueressig é escritora gaúcha de literatura fantástica

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