ContosFicção Científica

A última felicidade

Miguel Carqueija &
Ronald Rahal

 

         Lá estava eu novamente. Mas isso não importava. A cada vez, percebia detalhes que não tinha percebido anteriormente. Aquele era, pelo visto, o dia de sempre, com muita agitação na firma de meu pai. Caminhei pelos departamentos e fui até sua sala. Encontrei-o, como sempre, no escritório central, atarefado, falando em três videofones, assinando uma série de documentos e atendendo as consultas de alguns assistentes. Todo aquele ambiente era exatamente como recordava ou que imaginava poder recordar. Os odores, as luzes, os sons. De alguns não me lembrava mais com tanta certeza. Mas pareciam estar todos ali presentes, para que eu pudesse apreciar cada um. Do jeito como pensava estarem guardados em minha mente.

         Fiquei parado saboreando aquele momento, como se fosse a primeira vez. Eu sabia que não era, mas fingia que assim fosse. Então ele me viu e veio ao meu encontro, apertando-me calorosamente as duas mãos:

         — Lúcio! Que bom vê-lo de novo na loja! O Natal está perto e por isso essa azáfama toda!

         — Papai, não quero que interrompa os contatos…

         — Não há problema nenhum. Borel, assuma no meu lugar que eu preciso conversar com o meu filho.

         — Claro, seu Bandeira.

       Papai falou rapidamente com seus interlocutores, despediu-se deles e, pegando-me pelo braço, foi me levando pela imensa loja de departamentos da qual era o presidente, aparentemente muito eufórico com o movimento. Eu sempre admirava a facilidade que ele tinha para encerrar suas negociações cada vez que me recebia. Tudo era tão perfeito, cada detalhe tão real. Nenhuma daquelas pessoas parecia perceber que a única coisa real ali era eu. Mas afinal, o que era a realidade, se não a interação entre o que se vê e a consciência do observador? Imediatamente afastei esses detalhes quânticos da mente. O que importava era que todos estavam ali. Inclusive meu pai. Não poderia ser melhor.

         — Clarice já não vem aqui com tanta frequência — queixou-se ele. — Prefere cada vez mais a rotina do lar…

        — Mamãe teme atrapalhar seu serviço, papai…

      — Tolices! Aqui eu tenho tudo sob controle, como ela poderia atrapalhar? Não é uma maravilha contar com duzentos serviçais e todos eles serem ótimos? Não me dão nenhum aborrecimento.

       — Folgo muito com isso, papai.

        Ele me levou por uma escada rolante para me mostrar o Papai Noel com as crianças. Por toda a parte pessoas alegres escolhiam eletrodomésticos, roupas, brinquedos e outras utilidades e preenchiam, com os vendedores, seus contratos de compra. E eu sempre tinha a impressão de que o local não estava exatamente igual à vez anterior. Uma escada, uma pilastra, um carpete, um candelabro diferente… Ou as próprias paredes… Era assim toda vez que eu voltava. Sempre um detalhe que eu não me lembrava, mas que nunca deixava de ser preenchido. Tudo tinha que parecer real. E eu não me importava. Para mim, era essa impressão de real que bastava. Que mitigava a saudade. Que preenchia o vazio que sentia na alma.

       Por meia hora ele me mostrou a loja, os estoques de holotelevisores, os mais modernos modelos de bicicletas com A.I., todas as novidades. Do jeito que sempre era. Do jeito como me lembrava. Mas eu sabia que não poderia continuar. Havia pouca informação e a escassez de dados não permitia o prosseguimento. Eu desejava que aquele momento não parasse. Que continuasse. Que eu não precisasse me despedir dele. Que mesmo que isso acontecesse, eu depois pegasse meu carro aéreo e pudesse rumar para minha casa. Minha família. Jantarmos todos juntos. Mas era querer demais.

        Criei coragem e mais uma vez me despedi dele, pois tinha que ir. Mais uma vez.

         — Avise a Clarice que eu vou chegar tarde hoje – lembrou-me ele. – Tenho que fazer hora extra, o movimento hoje está muito bom.

         — Está bem, papai, mas não demore muito. Mamãe preparou um jantar muito especial, como o senhor gosta.

         — Ah! É bom saber isso. A velha e boa Clarice! Ah, quando é que você traz a Judy com os meus netos?

         — Qualquer hora, papai. Qualquer hora.

        Despedi-me dele, sentido um aperto no coração e um nó na garganta. Era sempre assim.

        Dirigi-me à porta de saída. Quando a abri, desejei por alguns segundos, que tudo aquilo fosse verdade. Encontraria aquele céu azul. O estacionamento, onde os carros aéreos eram trazidos do subterrâneo. Mas não havia nada. Só o corredor, frio, vazio.

       Sai do simulador e fui até a janela mais próxima. Tudo ficara para trás. Meu pai. A loja. As pessoas. A Terra. O Sol. Eram apenas lembranças, que me permitiam manter um pouco da esperança e da sanidade que tentavam me deixar.

      O Sol. Os cientistas haviam se enganado. Ele não duraria os cinco bilhões que haviam previsto. Transformara-se numa pequena nova. Um fenômeno raro no zoológico estelar que precisaria ser registrado, para as novas gerações. Agora, daquela distância, via-se apenas uma mancha esmaecida, frentes de gás em expansão que percorriam o espaço a uma velocidade vertiginosa. Naquele gás misturavam-se as moléculas que um dia havia constituído todos oceanos da Terra, seus habitantes, suas casas. De Papai e de sua loja.

        Poucos tinham podido embarcar na Arca. Só 130 mil, um cem mil avos daqueles 13 bilhões que um dia haviam existido. Era o mínimo, diziam os cientistas, necessário para manter a civilização, que um dia abarcara todo o planeta.

        Fora uma escolha difícil. Técnicos, engenheiros, clérigos, professores, agricultores. Tudo o que pudesse ser carregado da fauna e da flora. Coisas tão únicas como cada cristal de um floco de neve.

        Agora, aquela imensa nave, o maior projeto de toda a humanidade, singrava o Universo em busca de um novo lar. Nunca mais haveria a loja de papai.

        Inspirei fundo. Olhei o painel da parede, para verificar as funções que me cabiam naquele complexo gigantesco. Cada um tinha um papel a cumprir. O tempo, um luxo.

         Assim que pudesse visitaria a loja novamente. E reveria papai outra vez.