ContosFantasia

Urros no porão

                                                                             Miguel Carqueija

Foto: Miguel Carqueija
Foto: Miguel Carqueija

      Minha infância, e a de minha irmã Letícia, foram marcadas por acontecimentos trágicos. Recordo com especial horror algo desnatural, insólito, que aos poucos foi envolvendo as nossas vidas, como areia movediça na qual afundássemos.

      Nosso pai morreu muito cedo; mal o havíamos conhecido. Fomos criados por nossa mãe, a qual amávamos ternamente. Acredito que éramos boas crianças, amáveis, sensíveis e estudiosas. Não como essas crianças modernas, que até se trancam no quarto para assistir filme pornográfico, dizendo que estão estudando…

      Nossa mãe, Dirce, era pobre, como pobre fôra nosso pai, Galileu. Morávamos em Cachoeira de Macacu e mamãe, após a morte de papai, se esgotara em serviços domésticos, recusando a ajuda oferecida por nosso avô paterno, único parente próximo conhecido, fora uns tios que se encontravam lá no norte, demasiado longe e descontactados para que pudessem ajudar.

      Mamãe acabou por arruinar a sua já débil saúde, pegando uma anemia profunda. Então um dia – eu tinha onze anos e minha irmã, dez – fomos chamados por mamãe que, na cama, já mal tinha forças para se levantar.

      — Meus filhos – disse ela – se preparem porque eu não vou durar muito tempo. Eu não gosto, não quero, mas vocês terão de morar com o vovô Jonas.

      — Você vai ficar boa, mamãe! Você tem que ficar boa!

      Isso nós dizíamos, para crianças como nós era difícil acreditar em semelhante perda. Um dia, porém, depois de se retirar a vizinha que vinha dar uma ajuda, perguntei a mamãe:

      — Por que você não quer que a gente fique com vovô?

­     — Vocês teriam que ficar naquela casa horrorosa dele em Pedra Torta… eu morei lá com o pai de vocês, e não deu para aguentar, Mas talvez não haja outro jeito. Se vocês forem para lá, procurem ficar em paz com ele. E por favor, não desçam ao porão da casa! Por nada desse mundo! Até o Galileu tinha horror daquele porão!

      Letícia e eu quisemos saber porque. Só que mamãe não estava disposta a nos contar claramente.

      — Não sei dizer. Existe alguma coisa… nojenta, infame, naquele porão. É o segredo de seu avô. Algo que lá existe… que mete medo… talvez um bicho-papão, não sei. Cuidado também com a biblioteca do velho. Se virem um livro com encadernação de couro, com letras douradas, chamado o Necronomicon… não o abram. Não leiam uma linha sequer. É um livro amaldiçoado, capaz de destruir a própria vida de vocês. Prometam que me atenderão!

      Nós prometemos. Não podíamos negar à nossa mãe moribunda. Qualquer um teria prometido.

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       Chegou o dia, porém, em que mamãe nos deixou… definitivamente. Éramos de todo órfãos; só nos restava chorar, prantear nossa sorte.

       Vovô, que viera nos visitar uma única vez durante a doença de mamãe (e deixara, segundo ela mesma dissera, uma ajuda quase irrisória), mandou nos buscar. Seu advogado, um tal senhor  Picos, pegou-nos em Cachoeira e nos levou de carro até Pedra Torta.

      É chegada a hora de falar alguma coisa sobre vovô – o vovô que até ali conhecíamos. Era um homem ainda forte, nem um pouco alquebrado pela idade, meio careca, de voz trovejante e com uma tatuagem de âncora no ombro esquerdo. Quando em casa gostava de usar camiseta, por isso esse detalhe estava sempre visível. Ele já fôra marinheiro.

      Isto se refletia em seus hábitos, como o de fumar cachimbo e de dizer palavrões e grosserias com frequência. Às vezes, nos poucos contatos que havíamos tido, referia-se aos mistérios do mar. Dizia vovô que existiam sereias, cobras marinhas e toda a sorte de seres espantosos. Afirmava com veemência a realidade do “Kraken”, o polvo gigante; mas o ponto a que dava mais ênfase, era sobre o povo submarino — povo, não polvo, bem entendido.

      — Esses desaparecimentos de navios e tripulações — era sua conversa — só se explicam pelo ataque de entidades desconhecidas, que vêm lá dos pélagos profundos…

       Eu tinha medo do vovô, porque ele parecia sempre obcecado por assuntos misteriosos e assustadores. De vez em quando examinava uns blocos encardidos com anotações numa língua desconhecida. Ninguém sabia o que era aquilo.

      Às vezes deixava escapar coisas incompreensíveis. Entusiasmado por histórias em quadrinhos, eu dissera certa vez:

      — Ih, vovô. O século XXI vai ter tanta maravilha…

      — Patranhas, meu filho, patranhas! A maravilha, mesmo, vai ser a volta dos Antigos…

      Diante da minha curiosidade infantil ele se fechou em copas, procurou desviar o assunto, como que arrependido pelo que havia deixado escapar. Minha mãe costumava observá-lo com ares de preocupação, em tais horas.

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      E agora, como num sonho mau, Letícia e eu deixávamos tudo o que conhecíamos, nossos colegas, a professora Dona Jurema, as ruas amigas de Cachoeiro, o lar de nossa mãe e nosso pai, a capela, tudo enfim que um dia amáramos. Graças a Deus, fora as galinhas, não tínhamos animais para deixar por lá. Éramos muito pobres e por isso mamãe não nos deixara ter cão ou gato. Vovô mandara doar as galinhas à vizinhança, pois “seria ridículo vendê-las”. Era muito orgulhoso.

       O Senhor Picos era severo e pouco amigo de crianças. Não nos foi grande consolo na triste viagem, e às vezes chorávamos desolados. Mas enfim chegamos a Pedra Torta, sem porém atingir o seu perímetro urbano. A casa de vovô ficava afastada, numa colina, de onde se avistava a cidadezinha. Havia umas poucas casas na vizinhança; a dele certamente era a melhor, um casarão que sugeria alguém com posses, um ricaço algo decadente, tendo em vista o mau estado de conservação.

       Era uma casa de aspecto sombrio. Paredes cobertas de limo, janelas de guilhotina, cercada por umas árvores estropiadas, de galhos retorcidos em agonia, fantasmagóricos. Ao ver a casa pela primeira vez — já estivera lá, porém muito novo para me lembrar — senti um arrepio de angústia. O vôo de urubus, muito acima no céu, mas em círculos concêntricos que pareciam ocorrer bem sobre a mansão, impressionou-me negativamente. Bruxas em quantidade, com suas asas negras, repousavam nas velhas paredes, imóveis como se estivessem mortas. Vislumbrei também algumas lagartixas.

       A casa tinha dois andares e um sótão, além do porão; em alguns trechos o tijolo estava à mostra. Em outros, viam-se rachaduras. Aves agourentas esvoaçavam ali perto, soltando grasnados importunos.

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       As recordações que guardo daquele dia são ainda nítidas. Nosso avô, sabendo de nossa próxima chegada, esperava por nós sentado numa cadeira de balanço, no alpendre; sabíamos que ele morava sozinho, por temperamento ou por força das circunstâncias. Parecia uma caipira, com calças jean e camisa quadriculada vermelha, de manga comprida, além de boné. Não se levantou para nos receber, a não ser quando chegamos bem perto. Lembro-me de que o abraçamos com afeto, e que ele nos correspondeu de forma desdenhosa; depois convidou o advogado a tomar um drinque e, como este recusasse, recebeu os papéis de adoção e outras coisas trazidas pelo Sr. Picos e despediu-se dele.

      — Não deixe de aparecer! — disse vovô, uns quinze minutos depois, quando o Sr. Picos finalmente se retirou.

      Encontrávamo-nos agora na sala de estar, sentados lado a lado, junto à mesa coberta por um plástico adornado com desenhos de flores. Não ousávamos falar. Vovô sentou-se à nossa frente, no outro lado da mesa, acendeu o seu mal-cheiroso cachimbo, ajeitou os grossos óculos e indagou:

      — Vocês não querem comer alguma coisa?

      — Eu estou com fome — respondeu Letícia.

      — Eu também — reforcei.

      — Nós não comemos nada — falou Letícia. — Não tinha mais comida em casa e o Sr. Picos não nos deu comida.

      — Está bem. — Vovô Jonas se ergueu, pediu que esperássemos e nos trouxe, afinal, um pão de forma com umas fatias de mortadela velha. Nada que nos agradasse comer, mas tínhamos fome. E para beber nos deu água (sic).

      Estávamos mastigando num triste silêncio enquanto vovô fumava e nos olhava, creio que imaginando como poderia se livrar de nós, quando, pela primeira vez, escutamos um som abafado, gutural, uma espécie de urro.

      — Que foi isso? — perguntei.

      — Não ouvi nada — disse vovô.

      O urro se repetiu, mais forte e mais feio que da primeira vez.

      — Meu Deus! — falou Letícia, erguendo-se.

      — Fiquem aqui e terminem de comer! É uma ordem! — gritou vovô, com o tom de quem exige ser obedecido. Em seguida se levantou, recostou-se a uma encardida arca, como que refletindo, e, tomando uma decisão, dirigiu-se para o corredor oculto por uma cortina suja; antes de desaparecer, e fingindo não escutar um terceiro urro, ainda mais forte que o segundo, voltou a berrar:

      — Quando eu voltar quero encontrar vocês dois aí sentadinhos e com os sanduíches comidos! Ouviram bem?

      Sumiu de nossas vistas, deixando-nos entregues ao nosso pavor. Entreolhamo-nos, Letícia e eu, e não sei expressar a que ponto estávamos assustados. Creio que teríamos entrado pelo chão adentro, se isso fosse fisicamente possível.

      Pareceu-me escutar a voz irada de vovô, ao longe, gritando com alguém ou alguma coisa.

      Letícia, bastante transtornada mas sem coragem de largar o sanduíche meio comido, levantou da cadeira e veio até mim:

      — Orestes, o que é isso? Eu estou com medo!

      — Eu também! Lembra o que a mamãe disse?

      — Vovô tem um monstro no porão! Ele cria um monstro!

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      Estávamos petrificados e, sendo crianças, não tínhamos dificuldade maior em acreditar na existência de monstros. No armário, em baixo da cama ou no porão. Mas como poderíamos agir, se já tínhamos que enfrentar aquela outra espécie de monstro, aquele vovô-monstro que nos aterrorizava? Ao voltar ele olhou os pratos vazios e grunhiu:

      — Já comeram? Então para a cama!

      — Mas, vovô — tentei argumentar — é muito cedo!

      — Cedo uma conversa! Já são seis horas da noite! Para a cama!

      — Mas, vovô — disse Letícia, já com um acesso de tremedeira — não podemos ver um pouco de tevê?

      — O QUE??? E quem vai pagar a luz? Não sou eu? Para a cama, já disse!

      — Mas onde é a cama? — indaguei, perplexo.

      Ele paralisou um instante os seus movimentos, algo espantado, e aí lembrou que não nos tinha mostrado o quarto de dormir.

      — Ah, bom! Me acompanhem! Tragam a bagagem!

      E lá fomos nós, escada acima, atrás de vovô, e levando todo o peso da bagagem.

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      Os dias que se seguiram foram para nós uma espécie de inferno. Vovô parecia cada vez mais perplexo com a nossa presença, como se custasse a acreditar ter-nos aceito em sua casa.

      Comíamos de maneira irregular, pois vovô só fazia comida quando tinha vontade, e não jantava. Ele mesmo arrumava a casa, que nunca estava limpa ou bem arrumada, e ninguém aparecia por lá, a não ser entregadores e carteiros. E o correio só trazia contas, que eu notasse.

      Quando perguntávamos ao vovô pela escola, ele dizia que pensaria no assunto. Quando pedíamos para passear, ele dizia que não tinha tempo, ou que fôssemos passear sozinhos. E lá íamos, aliviados por estar longe daquela casa.

      E de vez em quando os urros apareciam de novo. Às vezes à noite, aterrorizando nosso sono.

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      A biblioteca do vovô ficava no andar superior. Mamãe nos avisara para não procurar determinado livro por lá. De qualquer forma nós raramente lá entrávamos: estava quase sempre trancada e só tinha livros velhos, empoeirados e feios. A casa toda dava uma impressão de decadência e, por não ter televisão, nem brinquedos, nem bichos de estimação (fora o monstro do porão, é claro), minha irmã e eu ficávamos sem ter muito o que fazer — exceto varrer o chão, lavar os pratos, limpar o papel de parede… tudo o que Vovô Jonas descobriu que podíamos fazer. Afinal, ele não tinha doméstica ou faxineira.

      Cedo descobrimos que vovô nunca nos levaria a passeio; só nos levava de carro à cidade quando precisava que o ajudássemos a carregar compras. Quiçá sem se dar conta, cada vez mais nos transformava em criados. Íamos perdendo o ano letivo, mas isso não parecia preocupá-lo.

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Devo agora narrar o que se passou quando fomos sozinhos a Pedra Torta. Como mamãe nos levasse à missa aos domingos, pedimos a vovô que fizesse o mesmo. Ele estava de chinelos e pijama de bolinhas na varanda, sentado na cadeira de balanço, lendo o “Diário de Pedra Torta” da véspera (já que esse jornal não saía aos domingos). Ao ouvir o nosso pedido quedou-se parado alguns instantes, com o jornal aberto, depois coçou a calva e nos encarou incrédulo:

      — Missa? Vocês falaram missa?

      — Falamos — respondi, sem entender tanto espanto.

      — Ora essa! Missa! Mas eu! Logo eu!

      — Que há demais, vovô? — arriscou Letícia. — Mamãe sempre levava a gente!

      — Ora! Mas sua mãe era sua mãe! Eu não levo ninguém à missa!

      — E por que?

      — Por que? Ora, não me pergunte! Eu não gosto de missa e está acabado! Não me perguntem mais nada!

      E lá fomos nós sozinhos, dispostos a encontrar uma igreja. No caminho, já em Pedra Torta (cidade feiazinha, principalmente na periferia), paramos numa vendinha para comprar balas com o pouco dinheiro que nos restava, já que vovô não nos dava nenhum. Ao entrarmos, porém, fomos olhados de esguelha pelos presentes. Letícia pegou o saquinho de balas, e nesse momento uma mulher tipo “Olívia Palito” chegou-se a nós e falou irada:

      — Vocês vieram da casa do Jonas?

      — Vovô Jonas? Sim — respondi assustado.

      — São parentes do demônio! Parentes do demônio! Daquele diabo de velho… por que não vão embora daqui?

      — Dona Florinda, por favor… — disse o português da venda.

      — Que por favor! O que é que esses capetinhas têm que fazer aqui?

      — Viemos comprar balas — disse Letícia, tentando ser corajosa — e estamos procurando uma igreja.

      — Uma igreja? O que querem com a igreja?

      — Queremos ir à missa.

      A megera soltou uma gargalhada, mas outra senhora nos deu a informação pedida e lá fomos nós. Mas era tudo muito estranho. Apontaram a gente a dedo, pelas ruas. Pelo visto a fama de vovô não era das melhores!

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      Certa noite, acuados dentro de nosso mofado quartinho, Letícia e eu iniciamos a nossa conspiração. Letícia dizia:

      — Orestes, a gente tem que fazer alguma coisa! Não podemos ficar aqui, sem saber o que está acontecendo!

      — Vovô falou que vai nos internar. Não tem tempo para cuidar de nós.

      — Já estamos aqui há quase um mês. Eu não agüento mais de fome! Ele não nos dá de comer!

      — Por que será que ele fica satisfeito com a comida que coloca e nós não?

      — Ele já não está em crescimento… — observou Letícia com perspicácia.

       — E o monstro do porão… acho que ele urra de fome. Do jeito que o vovô é pão-duro, deve alimentá-lo muito mal.

      — Quando ele conseguir sair do porão, vai nos comer.

      — Você quer fugir? O vovô deve estar dormindo agora! A gente sai e não volta!

      — E para onde nós vamos? Acho melhor a gente descobrir a verdade!

      — Como, mana?

      — Vamos investigar! Vovô tem sono pesado!

      E assim nos arriscamos a sair de nosso quarto e lá fomos, descalços, de mãos dadas, tateando no escuro, a respiração suspensa. Queríamos descobrir o que se passava naquela casa, mesmo que fosse o Terror em pessoa; levar a vida em suspense, daquele jeito, já não agüentávamos. Antes de sair, inclusive, aprontamos nossas mochilas com o que tínhamos de mais necessário, como as lembranças de nossa mãe. Estávamos preparados para fugir de casa.

Primeiro fomos até o fundo do corredor, onde uma porta trancada nos barrava o caminho para chegar ao Necronomicon, o livro do vovô que, a julgar pelo que a mamãe nos confiara, poderia nos explicar o que afinal acontecia naquele lugar.

      Desta vez, por um acaso incrível, a porta fôra esquecida aberta. Penetramos trêmulos naquele esconderijo e acendemos a luz, que era fraca.

      Procuramos, procuramos, num silêncio cúmplice. Finalmente, numa das prateleiras mais altas — eu trepara no patamar da estante — encontrei o Necronomicon. Puxei-o — era pesado! — e mostrei-o a Letícia. Era bem como mamãe nos falara: letras douradas, encadernação de couro.

       — Não o abra! — disse Letícia, presa de forte agitação nervosa. — Lembre-se do que mamãe pediu!

Mas eu não resisti, abri o livro ao acaso e li alguns trechos. Letícia também leu. E fechamos rápidos aquela coisa, e a recolocamos no lugar. Era horrível demais. Era insuportável. Tivemos pressa em sair daquele aposento empesteado por aquele objeto maldito; quando eu ia porém transpor a soleira minha irmã puxou-me pelo pulso:

       — Mano! Olhe lá, naquele canto!

      Olhei. Sobre uma velha e empoeirada mesinha de cabeceira, de cerejeira e mármore, estava um aparelho telefônico, também sujo. Uma extensão. E, naquele momento, ouvimos tocar.

       Entreolhamo-nos. Sabíamos que o telefone, fechado a cadeado, encontrava-se no quarto de vovô, no andar de baixo. Ignorávamos a existência de uma extensão.

      — Que você acha? — disse Letícia, excitada. Mudava o peso do corpo de um pé para outro, e tremia. Eu também me sentia super-assustado, alterado pelo medo.

      — Vamos tentar — opinei. — Quem sabe a gente descobre alguma coisa?

      Todas as conversas de vovô eram secretas, pois ele se fechava no quarto quando o telefone tocava. Mas já devia andar com um pouco de amnésia, do contrário jamais esqueceria a biblioteca aberta.

     Lá de cima escutamos, muito ao longe, um bramido. A coisa urrava lá embaixo, insone. Isso nos decidiu: puxei delicadamente o fone e o coloquei no meu ouvido. Sentei-me no chão e minha irmã fez o mesmo, colando o ouvido no pólo receptor do fone, de maneira a ouvir tudo o que eu iria escutar. Preciso revelar que também aquela extensão estava fechada a cadeado?

      Não tínhamos pego o início da conversa. Mas aí, de olhos arregalados, atentamos incrédulos para a voz que se fazia ouvir. Uma voz cavernosa, horrível, tão grotesca que praticamente não entendíamos uma palavra do que dizia. Parecia vir da maior profundeza dos infernos. No entanto, quem quer que fosse, desse mundo ou de outro, falava em português com vovô:

      — …………………………………….!

       — Não. Isso não. Isso eu não posso fazer!

  — Você tem ………………………..obrigações……………………………….as palavras ………………..Quitulu ……………………………………..

      — Sim, eu sei! Mas são meus netos! Não posso dá-los à Coisa!

       — ………………………… o livro ……………………………..são perigosos………………………………………………………depois ………………………….você………………………………………..as forças que …………. O futuro…………………………

— Eu não sou tão calejado e tão pervertido assim! Descobri isso! Maldita a hora em que aceitei servir aos Grandes Antigos! Isso vale a pena? Se vocês tomarem conta de tudo, nós ganhamos o que?

—………………………………..o Necronomicon………………………será amaldiçoado…..

— Não! Eu não posso dá-los ao maldito que está no porão! Eu sei! Participei dos seus rituais, estou marcado pelo seu sinete. Mas tudo isso agora me repugna! Não sei se ainda tenho perdão diante de Deus, mas quero ao menos que Ele poupe os meus netos! São crianças inocentes! Além disso, que irá achar a policia?

— …………………………………não serão encontrados…………………….ninguém poderá dizer…

— Não! Amaldiçoado seja! Pode me danar, mas não colaboro mais! Vocês não terão o que querem! Existe um Deus que pode mais que vocês!

— ……………………………..! Você verá…………………………ele sairá………………………..

— Isso é o que veremos! Vejo que terei de agir! Adeus!

A ligação foi cortada.

Estarrecidos, corremos para o nosso quarto e pegamos as mochilas; rapidamente mudamos de roupa, calçamos os tênis e saímos para o corredor. Já agíamos como adultos. Tínhamos compreendido a urgência de deixar aquela casa de horror, com ou sem nosso avô.

Encontramos vovô lá embaixo, diante do corredor da cortina suja, e já com um aspecto de Arnold Schwazenegger: com um rifle, um casacão cheio de bolsos recheados com cartucheiras, umas bananas de dinamite a tiracolo. Olhou para nós, transtornado:

— Vão embora daqui! Fujam! Não me sigam! A porta da rua está aberta!

Mas nós o seguimos pelo corredor mal iluminado até a porta de grossa madeira de lei, com tranca de ferro, que antecedia a escada do porão. Os urros prosseguiam, fortíssimos, e tremendas batidas sacudiam a poderosa porta.

— Para trás, maldito! — gritou vovô, destravando o rifle. — Para trás, eu ordeno!

Apertou um comutador junto à porta; ouvimos um ruído de descarga elétrica e um grito tremendo, seguido de uma série de baques surdos, como se um corpo pesado estivesse caindo pela escada abaixo. Vovô, tomado por um frenesi nervoso, parecendo à beira de um colapso, pôs-se a abrir os ferrolhos e cadeados e empurrou por fim a porta, sem deixar de nos ordenar seguidamente que fôssemos embora.

A porta era larga. Quando ele a abriu vimos na penumbra, lá embaixo — o porão era fundo — uma espécie de massa verde, cheia de olhos — algo tão horrendo que desafia a descrição.

Então Letícia me agarrou pelo braço e me puxou para trás, com uma decisão de pessoa adulta e de forma irresistível — sem dúvida, já com o organismo carregado de adrenalina. Ela havia compreendido, mais cedo que eu, que vovô ultrapassara o limite da salvação física e que já nada podíamos fazer, a não ser nos colocar em segurança.

Segui-a aos trambolhões pelo corredor medonho e semi-escuro, meus dois pulsos seguros por Letícia, que fechara os dedos em torno deles e puxava, e puxava, ansiosa pela nossa evasão. Os urros do monstro se confundiam com os gritos irados e insanos de vovô; logo soaram os tiros, urros de dor e raiva, ruídos de coisas se quebrando, de luta, gritos de dor de nosso avô… e finalmente, quando saímos ao ar livre, a explosão da dinamite…

……………………………………………………………………….

      Não permanecemos em Pedra Torta. Uma assistente social localizou nossos tios por parte de mãe, na Bahia, e conseguiu que eles nos acolhessem. Na casa destruída o porão foi investigado pelos policiais, que, afora os restos de vovô, encontraram uma estranha massa verde, gelatinosa; além disso havia um túnel natural por baixo do porão, cuja entrada foi obstruída pelas explosões. Obstruída solidamente. O que quer que existisse naquele local deve ter descido a tempo, ferido e mutilado, porém vivo, indo morrer nas profundezas do abismo. O incêndio que se seguiu destruiu a biblioteca de vovô e, sem dúvida, o exemplar do Necronomicon — o que certamente diminuiu a quantidade de mal neste mundo.

Embora bem acolhidos por nossos tios, que porém não compreendiam a nossa história (só diziam que vovô tinha parte com o “Coisa Ruim”), crescemos traumatizados por aqueles acontecimentos e jamais tivemos coragem de retornar a Pedra Torta. Para mim e para Letícia, aquele lugar era uma das passagens ou ligações do Mundo Subterrâneo com a superfície. Não sabemos porque vovô mantinha aberta aquela porta em seu porão. Mas temíamos retornar ao lugarejo e ser reconhecidos pelas forças das trevas que haviam tentado nos condenar à morte.

Não sei bem o que pensar de tudo isso. Quereria esquecer, apagar da memória esses acontecimentos terríveis. Até hoje me metem medo as pesquisas sobre as camadas geológicas, sobre o interior do planeta. As histórias antigas que colocam o inferno no interior da Terra não me parecem absurdas. Algo existe de fato lá embaixo: algo hediondo e infame.

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