ELA
Rogério Paulo Vieira
Deveria ter começado a
escrever este relato antes, quando ainda tinha saúde. Hoje, velho e
adoecido, as frases demoram para se formarem em minha mente. Escrever
uma simples linha cansa-me. Manter a caneta firme na mão é tarefa
árdua. Entretanto, tempo livre é o que não me falta nesta cama, de onde
dificilmente levanto, e espero conseguir, mesmo devagar, escrever minha
história. Se não a história completa, pelo menos o que foi mais
importante.
Minha vida começou a
sair da monotonia assim que entrei na Livraria Sapiens, atraído por uma
promoção de trinta por cento de desconto. Por quase oito anos comprara
na Livraria Toin, mas entrara pela primeira vez na Livraria Sapiens com
o fito de usufruir desse desconto. Perguntei onde era a seção de livros
de ficção científica. Nos fundos. Em criança apaixonei-me por contos e
histórias ambientadas no futuro, em outros planetas, com outras formas
de vida. Influência de quem ou de quê? Talvez das histórias a que
assistia na TV – seriados e filmes onde o futuro ora se mostrava
maravilhoso, ora catastrófico – mais catastrófico do que maravilhoso. O
que sentia de tão atraente em ficção científica era a possibilidade de
antever o futuro, além do próprio sabor das histórias, onde
praticamente tudo era novidade, tudo era diferente. Talvez seja uma das
áreas da Literatura que exija mais da imaginação do leitor: imaginar
máquinas que não existem, planetas que não se conhece, alienígenas de
formas e cores as mais estranhas.
Fui atendido pela
vendedora Fernanda. Ela me perguntou qual livro eu estava procurando e
não só prontamente fez a encomenda da edição, que estava esgotada na
loja, como me sugeriu outra obra do mesmo autor. Como constatei mais
tarde, seria uma das mais bonitas histórias que eu já lera.
Assim, foi entre essas
prateleiras que vi a Fernanda pela primeira vez. Olhos castanhos
escuros de brilho discreto. Cabelos pretos, lisos, descendo dois palmos
abaixo dos ombros e que ondulavam suavemente conforme ela se
movimentava. Pele branca, aveludada. Lábios finos, bem delineados,
convidativos. Sua voz enchia meus ouvidos de alegria. O caminhar tinha
a graça e a leveza de um andar felino. Seios médios e firmes, cintura
fina, nádegas ligeiramente arrebitadas. Seus óculos denunciavam que os
livros eram seus amigos constantes. Seu perfume despertava desejos.
Fascinava-me o
conhecimento que ela tinha sobre os autores de ficção científica. Virei
cliente cativo da livraria. Antes, eu comprava mensalmente um livro;
depois de conhecer a Fernanda, a periodicidade aumentou. Quando dei por
mim, minha paixão pela Fernanda estava mais forte do que a paixão pelos
livros.
Verifiquei os dias e
horários em que a livraria ficava mais tranqüila, com poucos clientes e
procurava freqüentá-la nesses horários. Ficava conversando com a
Fernanda sobre as histórias que gostara, sobre artigos científicos que
lera. Ocasionalmente, ela me presenteava com um recorte de jornal ou
revista com algum artigo científico que ela achava que eu iria gostar.
Eu gostava do artigo e do gesto dela. Nos horários mais movimentados,
eu me sentava numa poltrona e ficava a observar a Fernanda, admirando
seu andar, como atendia os clientes, como atendia o telefone, seu jeito
de falar: admirava o que ela era e o que ela fazia.
Lia os livros que
comprava na Sapiens rapidamente para poder conversar com ela sobre as
histórias. Não houve livro que eu lera que ela já não tivesse lido
antes. Isso me impressionava e nutria-me a paixão. Só depois de dois
meses que consegui juntar coragem para fazer-lhe um tímido convite para
um almoço. Ela aceitou. Fiquei rindo à toa, acho que até durante o
sono. Foi o almoço em que menos comi, pois estava com toda minha
atenção centrada nela, no que ela falava, pensando em como ela era
especial.
Nas semanas seguintes já
passeávamos juntos pelos parques da cidade, saíamos à noite e ficávamos
horas conversando sentados à mesa de algum bar. Íamos ao cinema, ao
teatro, aos shows. Chegamos até a escrever em conjunto uma história
para um fanzine. Após três semanas de namoro, passamos uma primeira
noite juntos. Nessa noite de amor percebi quanto ela era mais especial
ainda. Lembro até hoje de cada detalhe, pois nunca tinha tido tão
intensamente essas sensações. Achara estranho ela partir no meio da
madrugada para dormir em sua própria casa.
Quando estávamos para
completar um ano de namoro, tive a idéia de uma surpresa que eu sabia
que a agradaria muito. Tinha um amigo que trabalhava no planetário da
cidade; conversei com ele e consegui com que reservasse uma
apresentação extra somente para mim e a Fernanda. Ela sempre falava com
entusiasmo de uma certa constelação de nossa galáxia. Fiz diversas
pesquisas e separei informações sobre essa região, inclusive imagens da
constelação. Com o auxílio do meu amigo, preparei por dois meses essa
apresentação no planetário, embora achasse estranho o interesse dela
numa região tão longe, situada a cerca de 14.000 anos-luz de nosso
planeta. Chegado o dia, disse-lhe que tinha reservado um evento
especial para ela. Levei-a ao planetário e sentamos para assistir a
apresentação que eu planejara. Meu amigo operava os projetores e o
sistema de áudio. Eu gravara a narração para acompanhar as imagens
conforme eram exibidas. Mesmo com a pouca luz percebi as lágrimas que
rolavam em profusão pela face dela. Não pensei que ela se emocionaria
tanto assim; fiquei muito orgulhoso por ter proporcionado a ela aquele
momento.
Mas sua reação depois da
apresentação não foi a que eu esperava. Estava melancólica, como nunca
a tinha visto. Vai entender as mulheres... Pedi desculpas se a tinha
magoado. Porém ela disse que apreciara muito o presente. Queria
conversar com ela sobre o ocorrido e, após muita insistência, essas
foram as suas palavras:
— O motivo que me levou
a procurar trabalhar numa livraria foi desejar entrar em contato direto
com pessoas que lessem com prazer histórias de ficção científica. Os
clientes que se dirigiam àquela seção sempre tinham a minha atenção
especial, pois só uma pessoa que estivesse habituada com esse tipo de
história conseguiria me entender. Das dezenas de rapazes que conheci,
você foi quem achei apto a compreender-me e a aceitar-me e espero não
perceber que estive errada após você ouvir o restante da história.
Ela continuou:
— Lembra-se daquela
palestra à qual assistimos sobre vida extraterrestre e como conversamos
sobre ser impossível não existir outras formas de vida em outros
planetas? Bem, posso lhe afirmar que tenho convicção de que há vida em
outros planetas porque não sou um ser humano... Não nasci neste
planeta... Meu planeta natal, em sua língua, se chamaria Gorior.
Andávamos pelo parque
que cerca o planetário. Ela percebeu que eu tentava disfarçar o
sorriso. Achei que ela estava querendo zombar de mim com essa história
de alienígena, pois ela gostava de brincadeiras. Ela olhou para os
lados para ver se não havia ninguém mais por perto e ergueu o braço,
que começou a mudar de forma. Notando que eu ficara um tanto branco com
a demonstração, sugeriu que sentássemos num dos bancos do parque. Ela
continuou:
— No meu planeta, minha
atividade seria o que vocês chamam de exobióloga: eu estudava outras
formas de vida que não fossem do meu planeta. Eu ia a campo estudar
essas formas, navegando por diversos planetas que orbitavam outras
estrelas. Na minha última viagem, por sorte, eu estava sem a minha
equipe – éramos sete, cada um com sua função. A astronave que usávamos,
do instituto onde trabalhávamos, era muito fácil de pilotar. Seus
controles eram automatizados e obedientes a comandos de voz. Nessa
minha última viagem houve uma pane no sistema de propulsão enquanto a
nave cruzava o espaço por um, digamos, atalho, pela dimensão seis. Essa
era a dimensão que usávamos para cruzar longas distâncias no menor
tempo possível. Essa falha de propulsão desestabilizou a nave. Perdi os
sentidos e, quando despertei, a nave estava na superfície de seu
planeta.
— Os sensores da nave
revelaram o estrago. Era o ano 1908 de seu calendário e a colisão foi
na região que vocês chamam de Sibéria. A entrada de minha nave saindo
da dimensão seis havia causado uma devastação colossal numa floresta. A
onda de choque derrubara centenas de árvores, seguindo-se um incêndio.
Fiquei aliviada por ser desabitada a região. Minha nave sofreu poucas
avarias, pois ela foi construída obviamente com nossa mais avançada
tecnologia e com materiais os mais resistentes. Entretanto, o sistema
de propulsão dimensional estava inoperante. Comandei à nave que fizesse
um teste no sistema redundante de propulsão dimensional. Também estava
avariado.
— A nave possui um
sistema de camuflagem utilizado para que as espécies estudadas não
percebessem que estavam sendo observadas e ele estava ativo,
calibrando-se automaticamente às ondas eletromagnéticas existentes
nesse sistema planetário. A nave testou todos os outros sistemas e
estavam operacionais. Decidi levantar vôo e entrar em órbita do planeta
locomovendo-me com o sistema de propulsão subdimensional, que opera em
baixa velocidade e é usado para locomoções dentro de sistemas solares,
enquanto decidia os próximos passos.
— Assim que a nave
constatou o acidente, iniciara a transmissão periódica de um sinal
solicitando ajuda; porém eu sabia que seria pouco provável que me
localizassem, a não ser que uma sonda cruzasse essa região. O sinal de
socorro demoraria 14.000 anos para alcançar meu planeta. Sabia desde
então que estava condenada a passar o resto de minha vida nessa região
da galáxia...
A Fernanda me disse que
demoraria milênios para se chegar no planeta dela somente com a
propulsão subdimensional, se a nave conseguisse se manter por tanto
tempo. Com a nave dela em órbita e uma sonda camuflada que percorria a
superfície ela pôde monitorar a vida no planeta, aprender os hábitos,
assistir aulas e assimilar a cultura e a língua. Ela decidiu participar
da vida no planeta e escolheu um país tropical, pois precisaria viver
numa área do planeta com muito sol. Escolheu o Brasil também pela
facilidade em obter documentação falsa e viver com essa falsa
identidade.
O planeta não era
desconhecido para a espécie dela. Já haviam coletado informações
através de sondas lançadas por naves que passaram pelas proximidades.
Essa região do espaço é considerada uma das mais desabitadas e Fernanda
sabia que não haveria naves de seu planeta circulando nas proximidades.
Depois de ouvir a
história, entremeada com algumas perguntas e respostas que não
transcrevi para não me estender demais, eu disse mais ou menos isso:
— Fernanda, desde que
nos conhecemos eu tenho você sempre em meus pensamentos e agradeço ter
encontrado alguém tão especial. E eu continuo com esse sentimento por
você...
Abraçamo-nos e
beijamo-nos. Ainda falei:
— Agora eu entendi
porque você riu tanto quando lhe disse na nossa primeira noite que você
não era desse planeta...
Rimos juntos.
Depois dessa revelação
nosso relacionamento ficou melhor ainda, pois ela pôde ser mais aberta,
contar sobre a vida dela tanto aqui como em seu planeta natal. Ouvi
dezenas e dezenas de histórias interessantes e, a cada dia, percebia
que estava mais apaixonado. Sua constituição física permitia que
assumisse quase qualquer forma, como uma massa de modelar, desde que
conseguisse acomodar seus órgãos internos nessa nova forma que
assumisse. Na evolução das espécies em Gorior, o planeta natal de
Fernanda, houve muito mais competição entre as espécies do que a que
teve no planeta Terra. Houve animais predadores em abundância em
Gorior. Os animais que deram origem à espécie da Fernanda
desenvolveram, com o passar de milhões de anos, um sofisticado sistema
de camuflagem. E esses animais é que evoluíram para serem os seres
inteligentes do planeta dela.
Sua nave continuava em
órbita transmitindo o pedido de socorro para que, quem sabe, sua
espécie porventura a localizasse um dia. Esse sinal ainda não era
detectável pela tecnologia terrestre e o sistema de camuflagem
inteligente da nave encontrava-se ativo. Fernanda me disse que se algum
dia a tecnologia terrestre estivesse num nível que permitisse detectar
sua nave, a espécie humana já estaria avançada o bastante para poder
aceitá-la e ela não precisaria mais se disfarçar.
Podíamos agora ficar
mais tempo juntos. Antes ela se mantinha um pouco distante para
preservar seu segredo. Nunca havíamos adormecido um ao lado do outro
antes; ela sempre ia embora para dormir em sua casa. Passei a entender
o motivo. Ela só consegue se manter numa forma desejada quando
consciente. Quando inconsciente, em total repouso, assume uma forma
ovalada e escura. Quando eu acordava no meio da noite estava abraçado
com a forma ovalada e escura dela, o que me acostumei, com o tempo –
aliás, muito tempo.
O povo de Fernanda
decidira usar também implantes tecnológicos para aperfeiçoar as funções
corporais. Eram os neurocircuitos, que poderiam ter as mais diversas
funções a critério dos usuários. Fernanda optou por implantar
neurocircuitos que aumentassem a capacidade de memória – serviam para
armazenar informação – e um neurocircuito de comunicação – que servia
para ela contatar sua nave. Nos neurocircuitos ela armazenava dados das
civilizações que visitara nos diversos planetas. Aqui na Terra ela
usava para armazenar informações da anatomia feminina: são milhões de
detalhes, desde como simular a voz, já que esse não é o meio de
comunicação dela entre os da mesma espécie, até como simular a penugem
dos braços; ela escolheu a atual forma com base no que mais gostou do
que estudou sobre as mulheres.
Casamos depois de um ano
e meio de namoro. Foi uma cerimônia simples. Seus parentes não viriam,
é lógico, mas seus amigos compareceram à cerimônia, além de meus
parentes e amigos. A história que ela contava para justificar o fato de
não ter parentes era a de que era órfã e não fora adotada por ninguém,
vivendo num orfanato até começar a trabalhar e se virar sozinha.
Ela me contou toda a
História e características do povo dela. Eles também formavam casais,
tinham filhos, assim como a maioria das raças planetárias que ela
pesquisou. Havia poucas raças nos planetas que ela estudara que eram
assexuadas. Uma curiosidade de uma espécie que ela pesquisou foi que
seus filhos nasciam do relacionamento de três gêneros diferentes; era a
mais baixa população de um planeta num estágio avançado de tecnologia
pois era muito difícil se formar um trio em que cada um se desse bem
com os outros.
Nosso relacionamento era
muito bom. Brigávamos pouco e reconciliávamos logo em seguida.
Respeitávamos um ao outro, além de admirarmo-nos mutuamente pelas
qualidades que tínhamos. Viajávamos quando podíamos.
Fernanda gostava de
surpresas. Um dia, ao chegar em casa vindo do trabalho, abri a porta e
levei aquele susto pois estava à minha frente, com uma sensual
camisola, a garota da capa do mês de uma revista masculina de grande
circulação. Ela deu aquele sorriso e disse: — Sou eu, a Fernanda... E
caiu na gargalhada. Ela havia estudado as fotos da moça e alterara a
sua forma para a da garota da capa. Ela passou a noite naquela nova
forma. Sem dúvida, eu seria o homem mais invejado do planeta se alguém
mais soubesse sobre a Fernanda! De vez em quando ela aprontava isso,
recepcionando-me simulando ser uma atriz, uma modelo, uma cantora. Era
muito divertido e, como ela dizia, o importante não é a forma mas o
conteúdo.
Não havia como termos
filhos. Fernanda me explicara que dificilmente poderia haver geração de
prole entre espécies de planetas diferentes. Minha família e nossos
amigos cobravam a vinda de filhos, o que é natural. Dizíamos que
havíamos decidido não ter filhos para poder aproveitar a vida melhor a
dois. Optamos também por não fazer uma adoção, pois seria perigoso
alguém mais saber sobre a verdadeira identidade da Fernanda. A
precaução parecia ser a melhor opção. Cheguei a pensar se não deveria
me relacionar com alguém da minha espécie mesmo, para poder formar uma
família, mas o amor que sentia pela Fernanda fazia com esses
pensamentos virassem fumaça.
No ano em que
completávamos vinte anos de casamento, a Fernanda sugeriu que
fizéssemos algo muito diferente em nossas férias: propôs que fôssemos
dar um passeio com a nave dela pelo sistema solar! Eu, que sequer
cogitara em pedir para dar uma olhada em sua nave, fiquei entusiasmado.
Foram as melhores férias que tivemos. Já ficara maravilhado só por
ficar em órbita da Terra, observando os contornos dos continentes, a
formação de um ciclone, a luminosidade das tempestades. Partimos para a
Lua e tivemos a bela visão do planeta Terra à distância. Vênus e
Mercúrio não foram tão interessantes quanto os planetas exteriores. Em
Marte voamos por uma tempestade de areia, passamos sobre o Monte Olimpo
e sobre as calotas polares. Fiquei maravilhado com as cores de Júpiter
e, dentre suas luas, visitamos Europa e Io. Saturno é um espetáculo –
passamos sobre as partículas de poeira, pedra e gelo que formam seus
anéis. Urano e Netuno não me atraíram muito e vimos como Plutão era o
menor dos planetas, frio e escuro. Voltando à Terra, chegamos a nos
divertir no cinturão de asteróides, com a nave ziguezagueando entre
eles.
A espécie a qual
Fernanda pertencia vivia muito mais do que a espécie humana, assim ela
tinha que simular fisicamente um envelhecimento como humana. Quando
saíamos, a forma dela assumia a idade aparente, mas fazia questão,
quando estávamos a sós, de manter a mesma forma, a mesma idade
simulada, de quando nos conhecemos. Eu envelhecia, meus cabelos foram
ficando grisalhos, o vigor físico diminuindo. Sabia que partiria muito
antes da Fernanda. Perguntei-lhe o que faria após a minha morte. Ela
não gostava de tocar nesse assunto, mas como insisti ela respondeu que
iria mudar para outro Estado do país, alterando sua forma, voltando a
simular uma idade mais jovem e criando uma nova identidade. Ela até
mostrou para mim como deveria ser sua forma futura. Brinquei
dizendo-lhe que era muito feia e quase saio de casa com o olho roxo.
Uma vez ou outra eu
deixava um bilhetinho com alguma mensagem ou uma declaração de amor no
criado-mudo da Fernanda antes de sair para trabalhar. Ela apreciava
muito. Fiquei comovido quando, ao procurar por uma blusa numa gaveta,
achei um álbum onde a Fernanda guardara cuidadosamente todos os
pequenos bilhetes que eu já lhe tinha escrito. Havia um que estava em
posição de destaque nesse álbum, devia ter sido o preferido dela. Eu
escrevera: “Fê, hoje acordei de madrugada e não consegui voltar a
dormir. Assim, aproveitei para limpar a geladeira que tínhamos posto
ontem em degelo. Comi todo o resto da torta de morangos. Desculpe-me se
você pretendia comer um pedaço. Tive um pesadelo: sonhei que seu povo
detectara o pedido de socorro de sua nave e levara você de volta a seu
planeta. Despertei e vi que você ainda estava dormindo ao meu lado.
Queria lhe acordar e abraçar, mas resisti à essa vontade para não lhe
interromper o sono. Amo você. Beijos.”
São muitas histórias,
muito tempo passado um ao lado do outro, um relato que se estenderia
por muitas páginas se eu ainda tivesse forças e ânimo para continuar
escrevendo. Espero ter conseguido dar pelo menos uma ligeira idéia
desse relacionamento tão singular.
Em si, até que o
processo de envelhecimento é lento, sendo que nos damos conta
ocasionalmente do tempo transcorrido. Parece-me similar à situação de
caminharmos distraídos em nossos pensamentos e, quando nos voltamos ao
mundo, vemos que já estamos mais próximos de nosso destino, sem ter
percebido o quanto já caminhamos.
Com minha velhice vieram
minhas doenças, mas paro por aqui minhas palavras. Acredito que não vou
passar do dia de hoje. Paro de escrever por aqui... quero dormir...
. . .
A partir
desse ponto sou eu, Fernanda, quem escreve. Achei essa pequena
biografia de nosso relacionamento no caderno de anotações que se
encontrava ao lado de meu querido esposo e tomo a liberdade de
terminá-la por ele. Não poderia deixar inacabado o relato de nossa
história. Li tudo o que meu amor escreveu e não consegui conter minha
emoção. Recordei-me da primeira vez que o vi na livraria, da expressão
de susto dele quando lhe provei que eu era uma alienígena, dos
bilhetinhos que encontrava sobre meu criado-mudo... Achei engraçado meu
marido ter escrito que gostou tanto da viagem pelo sistema solar, pois
passou boa parte dela com enjôo e nunca mais quis repetir o feito –
descobrira que não nascera para ser astronauta, dizia ele. Entretanto,
sempre queria fazer de tudo para me agradar. Por exemplo, embora ele
adorasse cães, nunca cogitou de termos um, pois eu havia-lhe dito que
os cães, com seu olfato apurado, não suportavam algumas substâncias
alienígenas de minha composição química corporal.
Meu amado também não
escreveu sobre tudo o que ele fazia por mim. Por exemplo, eu devo
evitar o contato com água. Qualquer serviço doméstico que exigisse
contato com água, se não fosse feito por nossa empregada, era feito por
meu marido. Outro exemplo foi que ele quis aprender a linguagem usada
por meu povo para poder ler, no tempo livre, os arquivos que eu tinha
armazenado sobre a minha espécie. Como ele tinha facilidade com línguas
estrangeiras, não foi tão difícil dominar minha língua. Ele se
preocupava com minha saúde, pois eu não poderia consultar um médico
terráqueo no caso de algum problema. Assim, ele leu todos os estudos
sobre a fisiologia de meu povo para poder auxiliar caso eu precisasse,
embora fosse raro algum problema desse gênero. Até brinquei com ele
que, no caso de minha espécie me localizar, ele poderia ganhar a vida
como médico no meu planeta.
Infelizmente as relações
com minha sogra não foram boas. Ela me culpava por não ter netos. Não
poderia explicar-lhe a real razão de não podermos ter filhos. Mantenho
meu segredo conhecido pelo menor número de pessoas; só meu marido sabia
quem eu era na realidade.
Foi uma vida conjunta
muito boa; falta muita coisa ainda nesse relato. Tivesse meu marido
começado a escrevê-lo antes... Ele estava muito fraco. O médico já
dissera que ele não passaria de ontem, mas ele ainda resistiu
corajosamente mais um dia. Já está morto. Morreu há trinta minutos. Sua
face está serena, parece-me que até há um ligeiro sorriso ainda em seu
rosto. Deixe-me contar como foram seus instantes finais.
Eu estava sentada ao seu
lado, nesta mesma cadeira onde estou. Ele abriu os olhos vagarosamente.
Reconheceu-me. Disse, lentamente e com a voz muito fraca:
— Fê, você me
proporcionou uma vida muito feliz... Não sei para aonde vou agora, mas
sei que onde quer que seja, você não estará lá... Agora nos separamos e
não sei se nos reencontraremos... Espero que você continue a sua vida
com uma nova identidade e que seja feliz...
Uma emoção muito forte
tomou conta de nós. Havia um segredo que eu nunca contara a ele e isso
estava em desacordo com o que combinamos logo na primeira semana de
namoro: que seríamos sempre honestos e verdadeiros um com o outro.
Somente esse segredo eu mantinha fora de seu conhecimento. Não sabia
qual teria sido sua reação se tivesse contado antes. Ele era muito
compreensivo, mas mesmo os tolerantes têm seus limites.
Enxuguei as lágrimas
dele... Queria chorar, mas isso não é possível para minha espécie...
Respirei fundo e falei-lhe, carinhosamente, perto do ouvido:
— Você foi muito
especial para mim. Eu sabia, desde o momento que lhe tinha visto
naquela livraria, que teria essa vida maravilhosa ao seu lado... Em
nosso compromisso de sempre ser verdadeiro um com o outro, há algo que
nunca lhe falei e espero que entenda o porquê. Preciso lhe contar para
que fique na minha mente que tivemos um relacionamento onde realmente
conhecíamos bem um ao outro. Já lhe falei que no meu planeta também
temos dois gêneros: macho e fêmea. Em verdade, eu sou do sexo
masculino, eu sou um macho...
Meu marido queria
falar-me alguma coisa. Aproximei o ouvido ao seu rosto. Ele se esforçou
para perguntar, num tom de voz quase inaudível, inteligível somente
para quem passara décadas de vida ao seu lado:
— Fê,... então...
você... tem... um... pênis?
Eu lhe respondi:
— Tenho, querido, algo
parecido, mas sempre o mantive oculto em meu corpo...
Novamente ele se
esforçou para falar o que seriam suas últimas palavras:
— E... é... maior...
que... o... meu?
Não consegui conter a
risada... Ele sempre foi muito brincalhão... Ele deu um leve sorriso.
Sua mão desprendeu-se da minha... Sua respiração cessou... Falecera...
Passei a mão pelo seu rosto e abaixei-lhe as pálpebras...
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